quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Bom de cama



Jeremias era muito bom de cama, dormia muito, mas muito mesmo e só não dormia mais por falta de tempo. Quando dava dormia 14 horas por dia, quando não dava dormia 12. Aproveitava cada instante para dormir, intervalo do almoço, o caminho de ônibus pra casa, sentado no vaso do banheiro, qualquer ocasião era ocasião.

Só acordava para o essencial, comer. Trabalhar também fazia parte, mas era só uma maneira de manter seu estilo de vida, ou seja, sustentar a comida e o sono.

Sua mulher não reclamava, Jeremias chegava do trabalho, comia, comia (duas ou três vezes) e dormia. Acordava no outro dia de manhã, comia (uma ou duas vezes), comia e ia trabalhar. Fora a pouca companhia que o marido fazia era um marido ideal. Trazia o sustento para casa, a fazia muito feliz na cama.

Chegou a ir no médico, alguma coisa devia estar errada, mas não tava, saúde em ordem, incrivelmente saudável apesar de não se exercitar nada e de ter passado provalmente mais de 17 dos seus 34 anos dormindo. Sua mulher tentou de tudo, café forte, guaraná, umas folhinhas colombianas que uma amiga receitou, nada diminuia o sono do esposo. Não que fosse ruim a convivência com ele, ao contrário, era excelente nos breves instantes que estavam juntos, mas que era assombroso o tempo que ele dormia era.

Houve um tempo em que ela pensou que ele tinha uma amante, por isso andava sempre cansado e com sono, mas tirou essa idéia da cabeça, Jeremias correspondia muito bem ao seus não poucos desejos, de noite e de manhã, até dormindo ele respondia. O sono era tanto que dormiu na sala de espera do hospital na tarde que nasceu seu primeiro filho e na manhã que nasceu o segundo. Mesmo neste momento em que qualquer um ficaria tenso e ansioso, Jeremias tinha o sono dos anjos.

Com a chegada do segundo filho, quando o primeiro ainda tinha um ano de idade deixou a vida da família mais complicada, a vida da esposa é claro, porque Jeremias continuava como sempre. Só que sua esposa não estava aguentando, duas crianças pra cuidar sozinha é muito foda. Partiu para todas as terapias alternativas que encontrou, simpatias, macumba, benzedura, coisas holísticas e com cristais, luzes e o caralho a quatro, sem resultados, até ovo de codorna tentou. Isso até ajudou um pouco, Jeremias conseguia levantar uma ou duas vezes por noite pra olhar os filhos, desde que isso não exigisse mais de 10 minutos.

Um dia no retorno do trabalho seu ônibus foi assaltado, levou um susto tremendo, porque o assaltante não acreditava que com toda aquela agitação alguém pudesse estar dormindo. Com a pancada que levou no lado esquerdo da tempora acabou acordando, entregou tudo que tinha para o assaltante e foi acordado o restante do caminho até em casa. Pela primeira noite em sua vida teve problemas pra dormir, a adrenalina ainda correndo no seu sangue o impedia de ter uma noite tranquila. Tá ai a solução pensou sua esposa, a adrenalina é do que ele precisa pra ficar acordado! Então Jeremias passou a se expor a situações de risco todos os dias. Foi uma maravilha, sono de no máximo 6 horas por dia. Vivia em um dia com a mulher uma convivência que antes levaria uma semana, até choop com amigos ele começou a tomar, não dormia na mesa do bar.

Com o tempo o efeito da adrenalina não era mais o mesmo e Jeremias se arriscava cada vez mais, um certo dia, com muito sono, se distraiu na sua tentativa de obter mais adrenalina e acabou caindo do parapeito de um prédio de 23 andares. Sua esposa não se conformava, depois de tudo que ela fez o sono venceu, Jeremias iria dormir pra sempre.


Mas o que isso tem a ver comigo, o escritor desse diário? Nada! Nem conheço o tal ai de cima, quem me contou a história foi uma amiga, a que receitou as folhas colombianas, nem achei grande coisa, mas resolvi anotar, me contou a história depois de um momento muito intimo, ia ficar chato esquecer.